Em 1959, o cientista e romancista C. P. Snow proferiu uma palestra mais tarde publicada com o título The Two Cultures (As Duas Culturas). Nessa palestra, C. P. Snow lamenta a separação entre as ciências e as humanidades e o desconhecimento dos praticantes de uma das áreas em relação à segunda.
Abaixo incluo alguns excertos da palestra de Snow (a tradução é minha):
Acredito que a vida intelectual de toda a sociedade ocidental se encontra cada vez mais dividida em dois grupos polares. (...) Os intelectuais literários num pólo - no outro os cientistas, sendo os mais representativos os cientistas físicos. Entre os dois um abismo de incompreensão mútua - por vezes (particularmente entre os jovens) hostilidade e antipatia, mas principalmente falta de compreensão.
Várias vezes estive presente em reuniões de pessoas que, pelos padrões da cultura tradicional, são vistas como altamente instruídas e que têm exprimido com considerável fervor a sua incredulidade com a iliteracia dos cientistas. Uma ou duas vezes os provoquei e perguntei quantos deles conseguiam descrever a Segunda Lei da Termodinâmica. A resposta foi fria: foi também negativa. E no entanto eu perguntara algo que é aproximadamente o equivalente científico de: já leu alguma obra de Shakespeare?
Não pretendo com a reprodução destes excertos acusar os "intelectuais literários" de ignorância científica; o próprio Snow reconhece que também a maioria dos cientistas exibem falhas severas no seu conhecimento das humanidades.
Pretendo, isso sim, chamar a atenção para um fenómeno com o qual me tenho deparado e em relação ao qual sou particularmente sensível, dada a minha formação como matemático. Trata-se da visão redutora que o público em geral tem do termo "cultura". Já não me refiro ao facto de a "cultura geral" ser vista muitas vezes como um agregado desconexo e quase acéfalo de factos memorizados, sem qualquer cimento intelectual que os relacione (associar a data de 1143 à fundação da nacionalidade sem qualquer noção do contexto histórico associado; saber que Luís de Camões escreveu Os Lusíadas ou que Eça de Queirós escreveu Os Maias sem qualquer conhecimento destas obras; os exemplos são inúmeros).
Refiro-me mais propriamente à exclusão das ciências e, em especial, da Matemática, da noção usual de cultura. Quantas pessoas considerarão, usando o exemplo de Snow, a Segunda Lei da Termodinâmica como fazendo parte da cultura ("geral" ou não) de um indivíduo? Ou o teorema de Pitágoras (tantas vezes enunciado como uma lenga-lenga sem qualquer contexto)?
Um exemplo desta exclusão das ciências daquilo que constitui o "cânone cultural" pode identificar-se de forma particularmente evidente no livro (ambiciosamente intitulado) Cultura: Tudo o que é preciso saber, do escritor e ensaísta alemão Dietrich Schwanitz. Trata-se de um livro com várias centenas de páginas que inclui assuntos de História, Literatura, Arte, Filosofia, mas uma notável escassez de assuntos científicos. Há alguma menção à evolução das concepções do universo e umas poucas dezenas de páginas onde se passam em revista a teoria da evolução por selecção natural e a teoria da relatividade (sem que haja uma descrição minimamente rigorosa de qualquer das duas). Entende-se que a Biologia ou a Física não sejam as áreas que o autor domina; entendo menos a decisão de, mesmo com estas lacunas, dar o subtítulo "tudo o que é preciso saber" a um livro de onde o entendimento científico do universo, um dos maiores feitos da humanidade, esteja quase ausente. Isto para não falar na Matemática, que no livro mencionado tem uma expressão ainda menor que a das ciências físicas e naturais.
Mas sobre a Matemática e o seu papel na cultura mais há que dizer. O desconhecimento dos conceitos mais elementares da Matemática é uma das lacunas culturais e intelectuais mais facilmente perdoáveis que podemos encontrar. Quantas vezes nos horrorizamos com erros ortográficos sérios ou nos indignamos com o desconhecimento de personalidades histórias e artísticas nacionais ou internacionais? E, no entanto, quantas vezes não reagimos com um sorriso benévolo e compreensivo perante alguém que não sabe somar fracções, reconhecendo com um encolher de ombros "nunca fui bom a Matemática"? A ignorância matemática ganha assim uma aceitação social de que poucas outras formas de ignorância gozam, o que não pode senão perpetuar essa mesma ignorância, num ciclo vicioso de desconhecimento e complacência.
Porque é que a teoria da evolução por selecção natural de Darwin, uma das peças fundamentais na compreensão da nossa condição como seres vivos, não é encarada como uma componente pelo menos tão essencial da cultura como o conhecimento dos principais elementos da História de Portugal? Porque é que uma compreensão mínima do papel que Euclides desempenhou na concepção da Matemática não é exigida como requisito de cultura, a par do conhecimento dos grandes escritores nacionais, como Camões, Eça, Pessoa ou Saramago?
É verdade que existe o reverso da medalha, e não seria honesto não o referir. Também, em múltiplas ocasiões, tive oportunidade de encontrar quem acusasse o estudo da Filosofia e da Literatura de inutilidade no currículo de um estudante das ciências. Trata-se de uma posição igualmente atentatória à formação cultural integral do indivíduo. O facto é que o afastamento das ciências e das humanidades é prejudical a todos, como alertou C. P. Snow.
Não serão afinal as ciências, como fruto do intelecto humano, também humanidades?